Devem as agências de financiamento partilhar o sacrifício da transformação social?

Todos os dias, em lugares como Standing Rock, Ferguson, Alepo e Hong Kong, dezenas de milhares de pessoas colocam as suas vidas e o seu bem-estar em risco ao lutar pelos direitos humanos. Se são pagos, os montantes que auferem são muito baixos e os riscos são muitas vezes elevados, pelo que sacrifícios são exigidos a todos os envolvidos. Os interesses pessoais são subordinados à solidariedade e à causa, construindo desta forma um tecido social forte. A consistência entre as palavras e os atos é essencial para estabelecer relações de mutua lealdade e confiança.

Tendo em conta estes imperativos, não é lógico esperar que os financiadores, conselheiros e outros intermediários – que apoiam estas lutas à distancia e que ganham publicidade e legitimidade com elas – obedeçam aos mesmos padrões de comportamento?

Esta é uma velha questão que se pode ler entre as linhas das conversas entre ativistas e dadores, embora não tenda a ser discutida diretamente por causa do desconforto e dos problemas que pode causar. Mas ocasionalmente esta questão irrompe na esfera pública, proporcionando uma oportunidade para revisitar as regras éticas que regem o financiamento da transformação social. Estamos a testemunhar neste preciso momento um desses momentos, exemplificado na figura de Darren Walker, Presidente da Fundação Ford.  

No dia 28 de outubro de 2016, o New York Times revelou que Walker receberá entre 275 mil e 418 mil dólares por ano para integrar conselho de administração da PepsiCo – uma multinacional de junk food, como afirma Marion Nestle, professora de nutrição na Universidade de Nova Iorque –, uma serie de bónus em forma de opções sobre ações e um salário que em 2015 alcançou os 789 mil dólares.

Esta situação não é ilegal. Nem é uma novidade. O que torna este caso interessante é que Walker declarou publicamente o seu compromisso para repensar todo o trabalho da Fundação Ford sobre a desigualdade. E expressou o desejo de encontrar soluções transformacionais, em vez de ficar pelas zonas limítrofes dos problemas sociais e económicos, confrontando o espinhoso assunto do privilégio, tanto a nível institucional como ao nível pessoal.


Wikimedia Commons/Nathan Keirn (Some rights reserved)

Do sustained relationships with corporations compromise foundations' support of frontline activism?


O que torna este caso interessante é que Walker declarou publicamente o seu compromisso para repensar todo o trabalho da Fundação Ford sobre a desigualdade. 

Essas ideias foram desenvolvidas numa série de artigos e discursos cuidadosamente elaborados que foi música para os ouvidos dos ativistas e organizações sem fins de lucro – prometendo relacionamentos mais saudáveis e mais equitativos. Mas a decisão de Walker choca com os compromissos que assumiu, ameaçando com debilitar a mensagem que a filantropia está a precisar de grandes mudanças. Como assim?

Em primeiro lugar, a desigualdade não se produz por acidente ou por magia: é criada quando determinadas pessoas aproveitam a oportunidade de acumular a riqueza distribuída de forma desigual entre a população - incluindo os lugares bem pagos nos conselhos de administração das multinacionais. Outros funcionários da Fundação Ford estão proibidos de assumir posições remuneradas ou inclusive de exercer consultorias, e nenhuma organização sem fins de lucro pode fazê-lo devido aos conflitos de interesse em causa. Portanto, parece que Walker estar a publicitar um comportamento que contradiz de forma direta as regras do jogo que defende de forma categórica nos seus artigos.

Em segundo lugar, e apesar da retórica de transformação, a atitude de Walker deixa-nos uma sensação recorrente. Os presidentes das Fundações têm vindo a fazer parte de conselhos de administração corporativos há décadas. Mas esta propensão pela Responsabilidade Social Corporativa (CSR) só teve resultados positivos em relação às linhas de abastecimento, mal tocando as principais práticas de negócios das grandes empresas. A maior avaliação alguma vez financiada pela União Europeia não encontrou “nenhuma prova credível” que o CSR tenha tido uma influencia positiva para as economias ou as sociedades da região. Os novos membros dos conselhos de administração também não foram capazes de impedir a queda em desgraça de empresas como a HSBCWells FargoVolkswagenMitsubishiUnilever e muitos outros ícones da responsabilidade social corporativa. 

Walker estar a publicitar um comportamento que contradiz de forma direta as regras do jogo que defende de forma categórica nos seus artigos.

A PepsiCo não é a pior destas empresas, apesar de ter sido acusada de atividades antissindicais, trabalho forçado e violações do direito à terra. Mas o “estamos a ouvir e vamos fazer melhor” é sempre a desculpa – apoiada pela respeitabilidade que outsiders como Walker oferecem. Infelizmente, por mais que façam, continuarão a ser uma empresa de acionistas convencionais que tem o dever de maximizar os seus lucros vendendo coisas de pouco valor a pessoas que realmente não precisam comprá-las. Não há nenhum potencial transformador nesta equação. A verdadeira transformação reside na nova economia das cooperativas e outras experiências que não estão sujeitas às mesmas restrições. Num momento em que os ativistas estão a explorar energicamente a possibilidade da vida depois do capitalismo, é dececionante ver a Fundação Ford defender o sistema atual e limitar-se a levar a cabo operações cosméticas.

Isto leva-me ao problema número três: a decisão de Walker supõe uma oportunidade perdida para fazer uma declaração forte e influente sobre o futuro da filantropia, justamente quando a pressão para mudar as coisas está a aumentar através da campanha #ShiftThePower e outros esforços. Todos os que trabalham para uma fundação, uma ONG ou uma agência de ajuda têm sido cúmplices de não investir o suficiente naqueles ativistas que se encontram na primeira linha de combate ou naquelas comunidades diretamente afetadas.Assim como pelo correspondente excesso chegada a hora de recompensar aqueles que decidem financiá-los ou apoiá-los de outras maneiras.

A decisão de Walker supõe uma oportunidade perdida para fazer uma declaração forte e influente sobre o futuro da filantropia.

Eu fui beneficiário deste sistema por muitos anos, lutando pela justiça e pelo conforto da classe económica enquanto aqueles que fazem o verdadeiro trabalho e sofrem as consequências são amontoados na parte traseira da Economia. Este é um arranjo peculiar – divisionista, desatualizado, ineficaz e pronto para ser substituído se os financiadores estiverem dispostos a aceitar o desafio. E é por isto que a decisão de Walker é instrutiva.

Ao longo da história, a rejeição absoluta de privilégios e estruturas de poder desiguais tem vindo ser uma ferramenta-chave da transformação social: pensemos nos direitos civis ou na libertação das mulheres ou em qualquer movimento social bem-sucedido. Pertencer a uma organização pode promover algumas mudanças quando esta situação vem acompanhada por uma pressão externa. Mas nunca ninguém transformou o Establishment unindo-se a ele. A pressão funciona quase sempre na direção oposta, de forma subtil e ao longo do tempo, estreitando os horizontes para que eles se adaptem ao que é esperado. Afinal, quanto mais tenhamos investido em qualquer sistema, menos provável será que nos enfrentemos a ele.  

É por isso que o impacto duma rejeição pública do convite da PepsiCo poderia ter sido um poderoso sinal: que uma importante fundação está disposta a reduzir os seus laços com o mundo corporativo e focar a sua atenção nas dezenas de milhares de pessoas que estão a trabalhar naqueles lugares onde a mudança social está realmente a acontecer. 

Ninguém espera que os presidentes das fundações trabalhem de graça. Mas não é irracional esperar um certo nível de consistência entre as suas ações e as suas palavras. Como neste caso, a consistência envolve alguns sacrifícios, mas os mesmos não representam nada em comparação com a força extra e a solidariedade que é gerada no processo. A mesma é muito mais importante para a luta a longo prazo pela transformação social.