A legitimação da violência para resolver problemas sociais no Brasil

Faz 30 anos que o Brasil firmou um contrato social democrático, traduzido em sua Constituição Federal de 1988. Após décadas de regime militar (1964-1985), a nação emergia disposta a construir um projeto de reformas modernizantes que incorporasse milhões de brasileiros a um novo modelo de desenvolvimento mais digno e justo. Ao longo dos anos, contudo, o país tem sido incapaz de lidar com os altos níveis de violência urbana e com o crescente número de homicídios. O Brasil, sozinho, contabiliza cerca de 10% dos homicídios registrados no mundo, com aproximadamente 60 mil mortes violentas a cada ano.

A população está sitiada pelo medo do crime e da violência urbana. Ao mesmo tempo, cidadãos e governos frequentemente aceitam a violência como parte constituinte das nossas relações sociais, legitimando-a como resposta às ameaças e incertezas.

Em abril de 2017, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública conduziu um survey sobre as experiências da população brasileira com a violência urbana. A pesquisa teve uma amostra de 2.065 entrevistados com 16 anos ou mais e margem de erro de 2% (para mais e para menos). Os resultados indicam que cerca de 50 milhões de brasileiros com 16 anos ou mais tiveram pelo menos um familiar ou conhecido assassinado; quase cinco milhões foram feridos por arma de fogo; e cerca de 15 milhões conheciam uma pessoa que foi morta pelas forças policiais. Claramente, a violência é um elemento perversamente presente no cotidiano da população brasileira.

“O que este país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados em quem o povo possa depositar a sua fé”.

Outro survey realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com cerca de 2.000 entrevistados em todo o país indica que, para 69% dos brasileiros com 16 anos de idade ou mais, “o que este país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados em quem o povo possa depositar a sua fé”. Embora este dado demonstre, por um lado, que a população almeja desesperadamente líderes bons e carismáticos, sugere também que a mesma está sujeita a influências e ideias autoritárias que prometam acabar com a violência a qualquer custo.

A sentença acima é a tradução de uma das questões formuladas no clássico estudo de Theodor Adorno sobre personalidade autoritária, de 1950. Para o autor, períodos de crise como o que vivemos atualmente, no qual as pessoas se sentem inseguras e impotentes, são férteis para o avanço do autoritarismo e de líderes que tentam se converter em “messias” capazes de confortar a população.

De fato a sociedade brasileira tem legitimado um padrão violento de enfrentamento do crime, padrão este que também possui tons morais e religiosos. A democratização do Estado brasileiro, após duas décadas de ditadura militar, coincidiu com um acentuado crescimento nos indicadores de violência. Esse fenômeno se traduziu na deslegitimação dos direitos humanos e consolidou na sociedade a ideia de que os direitos humanos existem apenas para a proteção dos criminosos. Teresa Caldeira e James Holston consideram esse fenômeno como parte do que chamam de disjuntividade da democracia brasileira. Na pesquisa citada acima 60% da população brasileira com 16 anos ou mais concordam que “a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos”. Além disso, 53% dos brasileiros com 16 anos ou mais concordaram com a frase: “O policial é um guerreiro de Deus para impor a ordem e proteger as pessoas de bem”.

Wikimedia Commons/Rovena Rosa/Agência Brasil/CC BY 3.0 BR (Some Rights Reserved).

Over the years, however, Brazil has been unable to cope with extreme levels of urban violence and a continuously increasing number of homicides. 


Apesar deste amplo apoio da população, o Atlas da Violência 2017, divulgado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que a violência não é distribuída de forma homogênea no Brasil. Os homicídios estão concentrados na região nordeste do país, e a maioria das vítimas são jovens negros entre 15 e 24 anos em situação de pobreza ou outro contexto de vulnerabilidade urbana. Como agravante deste cenário, o rompimento entre duas grandes facções criminosas resultou em ao menos 120 mortos no sistema penitenciário apenas em janeiro. A violência no sistema penitenciário e a recente greve de policiais militares no Espírito Santo são alguns exemplos que ilustram a incapacidade das autoridades públicas, em todos os níveis de governo, de lidar efetivamente com o problema da violência urbana.

Para reverter este quadro, é necessário disputar a agenda pública em torno dos temas de defesa dos direitos civis e humanos, mas também a ideia da democracia. Atualmente, o Brasil está naufragado em níveis sem precedentes de desilusão política e moral e muitas das nossas conquistas em relação à cidadania e modernização institucional estão em risco. Neste cenário, o risco de “desconsolidação democrática” é agravado pela incapacidade de reformar as nossas polícias e instituições de justiça criminal, e pelo discurso de ultra-direita de líderes políticos como o deputado Jair Bolsonaro, candidato a presidente nas próximas eleições.

Ao mesmo tempo em que este é um fenômeno que não se restringe ao Brasil – vide a eleição de Donald Trump nos EUA, o Brexit na Inglaterra, o avanço de Marine Le Penn nas eleições francesas -, o Brasil conta hoje com os menores níveis de aceitação à democracia como regime de governo desde sua redemocratização nos anos 80. E este quadro é agravado pelo medo da violência urbana, que reforça a ideia de “olho por olho, dente por dente”, evidência da descrença completa no Estado enquanto esfera capaz de garantir cidadania.

Temos pela frente um grande desafio de reforma do Estado Brasileiro, em especial do sistema de justiça criminal. Mas temos também o desafio de fazer com que uma sociedade extremamente desigual acredite na igualdade e no respeito ao Estado de Direito como fator de mudança e melhoria das condições de vida.