Por que a discriminação contra as mulheres na internet deve preocupar a todos nós

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A internet não é tão livre e democrática como poderia ser, especialmente para as mulheres. Apesar de a liberdade de expressão ser protegida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em várias partes do mundo as mulheres não podem exercer esse direito sem sentir medo devido a práticas discriminatórias provenientes de governos e sociedades, ou devido à incapacidade dos estados de garantir acesso e proteger meninas e mulheres de ameaças à sua liberdade, privacidade e segurança.

Em 2021, a Relatora Especial das Nações Unidas (ONU) sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Irene Khan, publicou o primeiro relatório focado exclusivamente na correlação entre gênero e liberdade de opinião e expressão. Ela destaca que “a Internet se tornou o novo campo de batalha na luta pelos direitos das mulheres, ampliando as oportunidades para as mulheres se expressarem, mas também multiplicando as possibilidades de repressão”.

Tanto as causas quanto as soluções são complexas e dependem das experiências individuais das mulheres e de fatores como raça e localização geográfica. Comunidades, governos e corporações devem ampliar o acesso igualitário à internet, ao mesmo tempo em que promovem políticas para incentivar a participação virtual feminina e proteger as mulheres do assédio e do abuso.

Acesso desigual

Conhecida como a “Exclusão Digital de Gênero”, o acesso desigual à internet baseado no gênero reflete outras desigualdades sociais. Segundo a União Internacional de Telecomunicações, a diferença entre o acesso de homens e mulheres é de pelo menos 10% nos países menos desenvolvidos, especialmente na África e nos Estados Árabes. Duas das principais barreiras ao acesso igualitário são as normas culturais e a acessibilidade, de acordo com uma pesquisa do “Best Practice Forum on Gender and Access”.

Conforme declarado pelo Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, a liberdade de expressão inclui “buscar e receber informações e ideias de todos os tipos”. No entanto, as mulheres enfrentam dificuldades para acessar e encontrar informações relevantes online, quando essas são consideradas “imorais”. Essa censura pode ter origem em regras governamentais, em políticas das empresas de redes sociais (que banem conteúdos relacionados à saúde sexual, por exemplo) ou em normas culturais (que priorizam o acesso dos meninos a dispositivos tecnológicos e até proíbem meninas e mulheres de estarem online, como é o caso no Norte da Índia). 

Comunidades, governos e corporações devem ampliar o acesso igualitário à internet, ao mesmo tempo em que promovem políticas para incentivar a participação virtual feminina e proteger as mulheres do assédio e do abuso.

Com isso, meninas e mulheres não conseguem tomar decisões informadas, especialmente em um momento quando a pandemia de Covid-19 forçou as pessoas a dependerem fortemente da internet. Também existem efeitos econômicos derivados dessa falta de acesso: mulheres são impedidas de procurar educação online e, consequentemente, carreiras no ramo da tecnologia.

É comum que aquelas que desafiam o status quo sejam perseguidas por seus próprios governos. Com base em legislações ultrapassadas, mulheres enfrentam processos judiciais, multas pesadas ou até mesmo prisões por produzirem conteúdo na internet. Em 2020, por exemplo, o governo egípcio prendeu pelo menos dez mulheres que são influenciadoras no TikTok. De acordo com a Anistia Internacional, elas “estão sendo punidas pela maneira como se vestem, agem, ‘influenciam’ o público nas redes sociais e ganham dinheiro online”.

Ações simples como dublar e dançar podem ser usadas como evidência suficiente para acusações por indecência. Como se isso já não fosse absurdo o suficiente, no Egito, usar a internet para denunciar violência física e sexual também pode gerar implicações criminais por “violar os princípios e valores familiares” e “incitar a libertinagem”.

Violência de gênero online

A lista de atos de violência online contra as mulheres é longa: doxing, difamação, “sextorção” e até julgamento social. Do Ocidente ao Oriente, existem tentativas de oprimir as vozes femininas, incluindo das mulheres que ganham destaque profissional, como jornalistas, defensoras de direitos das mulheres e agentes políticas. Uma pesquisa encomendada pelo The Guardian analisou os comentários de 70 milhões de leitores e mostrou que as jornalistas do sexo feminino estão mais sujeitas a abuso e trollagem do que seus colegas do sexo masculino.

Não há dúvida de que homens e mulheres sofrem violência online. Contudo, os tipos mais graves, como assédio sexual e perseguição, afetam as mulheres desproporcionalmente. Em alguns casos, as ameaças se convertem em crimes reais fora do mundo digital, colocando em risco não apenas a mulher, mas também sua família e amigos.

Outras possíveis consequências da violência online contra mulheres são danos emocionais e psicológicos, danos à reputação, danos físicos, danos sexuais, perdas econômicas, invasão de privacidade, perda de identidade e limitação de mobilidade, sem contar que as táticas repressivas frequentemente levam à autocensura.

Como mudar essa realidade

É importante notar que a discriminação online contra mulheres e o comportamento abusivo direcionado a elas perpetuam uma discriminação de gênero mais ampla. Defensores dos direitos femininos devem buscar soluções que enfrentam a raiz dos problemas e trabalhar para mudá-la na cultura social ao longo do tempo. Entender os contextos locais é imperativo para o planejamento de estratégias efetivas.

Como reconhece o Conselho de Direitos Humanos da ONU, a igualdade de gênero em todos os níveis de tomada de decisão é essencial para se alcançar o desenvolvimento. Portanto, em primeiro lugar, as mulheres devem ser incluídas e consultadas sobre políticas e normas relativas ao seu uso da tecnologia.

No que diz respeito à disponibilidade e acessibilidade, os governos devem investir em infraestrutura para fornecer conexão acessível à internet de forma a diminuir a exclusão digital de gênero, bem como devem oferecer espaços públicos seguros para as mulheres navegarem na web e aperfeiçoarem suas habilidades digitais. Esses lugares podem ser bibliotecas e escolas.

Evidências sugerem que quando novas regras e medidas legais são criadas, as mulheres se sentem mais seguras para participar da esfera online. No entanto, as leis e políticas existentes muitas vezes falham em abarcar a violência online, dadas suas características potenciais de alcance, velocidade e impacto. Investimentos devem ser feitos para adaptar ou criar novas regulamentações e para treinar pessoal, como foi o caso da Finlândia – que criou um projeto com o objetivo de combater o discurso de ódio e crimes de ódio virtuais, incluindo um módulo de treinamento para policiais, promotores e juízes.

Além disso, as empresas têm a obrigação de respeitar os direitos humanos. Suas políticas devem garantir acessibilidade a conteúdos direcionados às mulheres, especialmente aqueles relacionados à saúde sexual e reprodutiva. As empresas de tecnologia são frequentemente acusadas de possuírem diretrizes de comunidade tendenciosas e subjetivas, por isso, devem trabalhar na melhoria contínua, por meio de um enfoque em direitos humanos e gênero.

A violência de gênero deve ser combatida por tais empresas, que devem oferecer mecanismos fáceis e visíveis de denúncia, além de apoiar as vítimas. Também devem investir na análise e distribuição de dados sobre abuso online, fomentando assim pesquisas sobre o tema. Em 2021, Facebook, Google, Twitter e TikTok concordaram com compromissos propostos pela World Wide Web Foundation com foco em duas áreas: curadoria de conteúdo e denúncia de abusos. É um primeiro passo para levar a questão a sério e acabar com a cultura de impunidade na internet.

Organizações internacionais e comunidades locais são atores-chaves no avanço da liberdade de expressão das mulheres. Elas podem colaborar com projetos locais para promover educação digital, acesso à internet e mudanças culturais. Lançado em 2018 pela ONU Mulheres, em parceria com a Comissão da União Africana e a Unidade Internacional de Telecomunicações, a iniciativa African Girls Can Code é um dos inúmeros exemplos positivos pelo mundo.

Por último, mas não menos importante, aumentar a conscientização sobre o assunto é fundamental para criar comunidades virtuais mais seguras, que reconhecem a existência do problema e que não toleram a violência e a opressão contra meninas e mulheres.

Silenciar as mulheres viola sua liberdade de expressão, limita suas vozes nos debates públicos e reforça a desigualdade de gênero com consequências perversas para a democracia e o desenvolvimento, o que deve preocupar a todos nós. Isso compromete o atingimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5: “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Os objetivos prometem “não deixar ninguém para trás”, mas não pode haver progresso real se as mulheres não forem incluídas.