A necessidade de tecnologias ancestrais comunitárias para o trabalho de advocacy socioambiental

/userfiles/image/Gomez_Image_03-08-22.jpg

O trabalho de incidência legislativa no Congresso Nacional para a defesa dos direitos socioambientais no Brasil nunca foi tarefa fácil. As organizações da sociedade civil, respaldadas e legitimadas pelos movimentos sociais, sempre enfrentaram obstáculos nebulosos no processo de diálogo nas salas frias em Brasília, com os parlamentares e suas equipes de assessoria.

Entretanto, a pandemia da COVID-19 e a gestão intencionalmente prejudicial à vida da população, coordenada pelo governo federal, abriu espaço para que projetos de lei que violam direitos humanos básicos e fundamentais passassem para as devidas aprovações sem diálogo com a sociedade civil. Com isso, o processo de advocacy da sociedade civil a partir dos movimentos e organizações foi dificultada, obrigando novas alternativas de mobilização e denúncia. 

De minha casa, na periferia da zona leste da cidade de São Paulo, vivenciei o processo de incidência coletiva junto a uma rede de organizações sobre o projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Em linhas gerais, o projeto flexibiliza licenciamentos ambientais com baixa segurança, atentando contra os direitos dos povos tradicionais e retirando possibilidades da sociedade brasileira trilhar um caminho do desenvolvimento sustentável, previsto constitucionalmente. 

A cada e-mail enviado para parlamentares, a cada tentativa de contato telefônico e pressões via redes sociais havia um sentimento que percorria à todos nós, espalhados em diferentes casas ao redor do país, de que as mensagens não chegariam ao terreno de Brasília, e que a razão não era o coronavírus em si e os protocolos de segurança exigidos em decorrência da pandemia, mas a utilização desse fato enquanto espaço para excluir a participação social e o debate público por parte da máquina política institucional.

Junto a esse projeto, outra proposta legislativa nos exigiu esforços em diferentes frentes e que afetavam diretamente o direito à existência das populações indígenas. O Projeto de Lei 490/2007 se utilizou da tese do “marco temporal” em discussão a partir da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709/2020 para alargar brechas inconstitucionais que, em suma, sugerem uma série de alterações nas regras de demarcação de terras indígenas e em outras questões envolvendo o Estatuto do Índio, prejudicando direta e indiretamente as possibilidades de existência dos povos indígenas no país.

Para essa última proposta legislativa, para além das manifestações rotineiras de incidência parlamentar, aconselhamentos técnicos às casas legislativas e manifestações via redes sociais buscando apoio da sociedade civil, um Levante pela Terra foi mobilizado nos territórios conflituosos de Brasília. 

Assim, povos indígenas de diversas partes do país se deslocaram para a capital buscando visibilizar suas lutas contra um retrocesso que pode mudar completamente as rotinas de vida dos povos originários. Nessa mobilização para além de sofrerem com o descaso do Congresso Nacional que acabou por aprovar o projeto na comissão legislativa mais importante da casa - a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) - tais lideranças indígenas também foram submetidas à fortes repressões policiais e distorções narrativas por parte de lideranças governistas que se articulavam para reduzir a relevância da pauta.

Nesse sentido, do lugar em que ocupamos na Conectas, enquanto organização que defende os direitos humanos, nos coube apoiar as mobilizações, articular denúncias internacionais e utilizar de todos os instrumentos de denúncia para barrar o retrocesso. 

E de meu lugar particular enquanto uma jovem negra que vive na periferia urbana da cidade de São Paulo, há contradições em atuar pela defesa socioambiental. Ao seguir afastada da vida cotidiana dos povos indígenas, mas trabalhando na defesa dos direitos socioambientais o que fica é o sentimento de claustrofobia de quem vê da janela de casa o retrocesso socioambiental e a violação de direitos humanos avançar em rapidez assustadora tal como a fome, o desemprego, a precarização do trabalho e o avanço do racismo em todas as suas faces.

Os retrocessos socioambientais descritos acima trazem mais elementos para o caminho já traçado e denunciado de necropolítica e genocídio arquitetado pelo Brasil oficial, pela política institucional em suas diferentes esferas. Em algum momento da história passada foi mais possível incidir no Congresso Nacional para barrar retrocessos, traçar pareceres técnicos para incidir sobre o Poder Judiciário e articular denúncias com organismos internacionais que causasse pressão sobre o Brasil. 

Hoje, pela rapidez com que essas ações se mostram paliativas e pouco eficazes de maneira isolada, nos prova que nossas estruturas sempre serão frágeis. E tal fragilidade precisa ser lida como tal, para que possamos encontrar nas brechas de sobrevivência dos povos marginalizados, na resistência indígena e quilombola, nas estratégias de luta e articulação dos povos negros nas periferias urbanas, ferramentas ancestrais que complementem nossas lutas de hoje.

Mais do que esperar tecnologias de um futuro que continuará passando pelo crivo dos mesmos detentores do poder, precisamos buscar as tecnologias do passado ancestral dos povos originários, e conectá-las com os saberes das periferias urbanas, dos territórios quilombolas, das lideranças rurais, para que assim, pontes sólidas sejam construídas entre todas as pequenas brechas insurgentes.

No fundo, o que se precisa transformar dentro da incidência política diante à pandemia, não é apenas o seu modus operandi em si, mas de maneira mais profunda, é a sua verdadeira validade formal nos espaços que se dizem democráticos mas que, na primeira brecha encontrada, mina com as possibilidades de diálogos com as vozes da sociedade civil. 

É necessário que, para além de visibilizar a ineficiência dos mecanismos de participação que estavam sob nosso direito, nos coloquemos a favor de mudanças radicais nas estruturas participativas atuais. Que levem em conta a visibilidade direta dos povos atingidos pelos retrocessos, para que esses nos apontem como fazer o Brasil que vem dessas brechas que nós protegemos e defendemos se torne o Brasil oficializado na política institucional, novamente, como pode ter sido iniciado em momentos mais democráticos.