Arriscando a vida pelos direitos humanos durante uma pandemia

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Pessoas defensoras dos direitos humanos (pessoas DDH) em todo o mundo têm sido expostas a uma ampla gama de perigos e ameaças - desde campanhas de assédio e difamação até detenções arbitrárias, sequestros e assassinatos. Entretanto, o surgimento da COVID-19 piorou as condições de um tipo de trabalho que já é extremamente árduo mental, física e emocionalmente.

Conforme descrito no mais recente relatório anual de Front Line Defenders, pelo menos 331 pessoas defensoras dos direitos humanos foram assassinadas em 2020 (um aumento de 8,8% em relação à 2019).

Embora certas restrições tenham sido necessárias para conter a propagação de um vírus altamente contagioso, graves limitações às liberdades fundamentais foram usadas propositalmente e de forma desproporcional contra ativistas que se recusaram a colocar seu trabalho em pausa, mesmo quando o resto do mundo estava em confinamento.

No início da pandemia, a Protection International (PI) começou a conduzir pesquisas por toda a organização para avaliar o impacto da COVID-19 sobre as pessoas defensoras dos direitos humanos com as quais trabalhamos. A PI trabalha principalmente em 11 países - Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Colômbia, Brasil, República Democrática do Congo, Quênia, Tanzânia, Tailândia e Indonésia. Nossas conclusões validam o que muitos profissionais de direitos humanos temiam que acontecesse: medidas de saúde pública estão sendo instrumentalizadas contra as pessoas defensoras dos direitos humanos; houve um aumento das ameaças e ataques físicos e digitais; os interesses comerciais continuam prevalecendo em detrimento dos direitos humanos; os presos políticos continuam detidos e negligenciados em meio à emergência; e o direito de defender os direitos humanos está seriamente em risco.

Apenas um mês após o início dos lockdowns, nosso time relatou que a crise de saúde pública tinha rapidamente exacerbado os desafios existentes - incluindo o aumento da vigilância física e digital, aumento da criminalização, detenções ilegais e prisões arbitrárias. As taxas de violência baseada em gênero, inclusive contra as mulheres DDH, dispararam, e a já desproporcional sobrecarga com o cuidado familiar aumentou ainda mais para as mulheres. A marca no termômetro de risco não subiu gradualmente; as pessoas DDH sentiram o choque quase que instantaneamente.

Primeiramente, discutiremos a tendência mais preocupante e predominante: a instrumentalização das restrições governamentais da COVID-19 contra seus próprios cidadãos.

Durante tempos de crise, os Estados se apoiam fortemente na aplicação da lei para a implementação de medidas de emergência, e devido à má interpretação dos mandatos do governo, ou às vezes à diretrizes propositalmente duras, as pessoas DDH e jornalistas frequentemente enfrentam o peso de sua força bruta. Quase todas as equipes de PI relataram que as medidas de confinamento permitiram uma maior vigilância das pessoas defensoras.

As administrações que, sem fundamento e de forma generalizada, culpam jornalistas e as pessoas defensoras dos direitos humanos pelos impactos da pandemia estão, sem dúvida, contribuindo para o aumento da violência contra esses grupos.

Na Guatemala, por exemplo, um funcionário notou uma presença policial excepcionalmente persistente fora de sua casa. Na Colômbia, nossa equipe relata que as ameaças contra as pessoas defensoras e suas atividades aumentaram, pois o governo apoia as autoridades que estão agindo sob o pretexto da necessidade de controlar a propagação do vírus.

No início da pandemia, muitos Estados não informaram expressamente que a imprensa deveria ser excluída das normas de confinamento. Um ano depois, jornalistas e dissidentes continuam a ser alvos, sofrendo descrédito e censura através de alegações de desinformação e fake news sobre o vírus ou sobre a eficácia da resposta do governo. Na Tanzânia, por exemplo, o falecido presidente John Magufuli não reconheceu que a COVID-19 era uma questão preocupante até fevereiro de 2021 e dois editores de jornais independentes disseram que "os funcionários tinham informalmente dito a eles para não publicarem material que o governo não gostaria".

O Brasil tem sofrido um destino semelhante. O presidente Bolsonaro negou a legitimidade da pandemia e "acusou a imprensa pelo caos que o país está vivendo para desviar a atenção de sua desastrosa gestão da crise sanitária", explica Repórteres sem Fronteiras. As administrações que, sem fundamento e de forma generalizada, culpam jornalistas e as pessoas defensoras dos direitos humanos pelos impactos da pandemia estão, sem dúvida, contribuindo para o aumento da violência contra esses grupos.

A América Latina tem sido historicamente a região mais assolada por assassinatos de pessoas DDH e neste ano pandêmico não tem sido diferente. O caso da Colômbia é particularmente desanimador, considerando que o país não só continua sendo o  mais perigoso do mundo para as pessoas DDH, mas também porque a resposta do governo ao aumento da violência e dos massacres durante a pandemia tem sido empregar técnicas de "militarização". O confinamento rigoroso limitou o acesso das pessoas DDH às redes de proteção, rotas e pessoas aliadas, especialmente para aquelas pessoas defensoras que têm acesso limitado ou nenhum acesso à Internet. Atores armados têm aproveitado as medidas de confinamento para localizar e assassinar mais facilmente as pessoas defensoras. Somos Defensores relatou um aumento de 61% nos assassinatos de pessoas DDH durante o primeiro trimestre de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019. De acordo com o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e Paz (INDEPAZ), pelo menos 308 pessoas DDH e líderes sociais foram mortos na Colômbia desde o início dos primeiros confinamentos em 25 de março de 2020, incluindo 83 em 2021. Muitas pessoas DDH colombianas usaram programas de realocação temporária para se protegerem, mas no início da pandemia, muitos desses programas foram suspensos devido à restrições de viagem. Quando as evacuações de emergência começaram a ser coordenadas novamente, a Colômbia foi o principal país com deslocamentos de pessoas DDH em 2020.

A Protection International Colômbia tem trabalhado principalmente com comunidades indígenas na região de Orinoquía, no leste do país, que continua sendo seriamente negligenciada pelos provedores de ajuda emergencial e humanitária. Muitas pessoas indígenas defensoras dos direitos humanos são forçadas a se preocupar com necessidades básicas como saúde e alimentação, sendo obrigadas a deixar em segundo plano as atividades relacionadas à proteção de suas terras e do meio ambiente. As restrições à mobilidade e a falta de conectividade afetaram particularmente as pessoas DDH rurais, especialmente as mulheres. "A já enorme sobrecarga com cuidados familiares e domésticos que recai sobre os ombros das mulheres tem aumentado dramaticamente. Além disso, elas ficam mais expostas e vulneráveis à violência doméstica, pois, se houver um telefone celular na casa, ele estará normalmente com o homem ", explica Aída Pesquera, Representante da PI na Colômbia. "Tudo isto as limita bastante no exercício de seu trabalho em prol dos direitos humanos".

A pandemia não pode ser usada como pretexto para restringir injustificadamente os direitos e liberdades fundamentais.

A Protection International tem trabalhado com líderes locais para fornecer dados móveis de celulares para facilitar seu acesso à Internet e garantir que as pessoas defensoras sejam capazes de se comunicar com suas redes de proteção e dar apoio às comunidades, bem como possam continuar com suas práticas ancestrais de autoproteção. "Nós as apoiamos na mudança para um lugar onde possam se conectar com segurança, e realizamos semanalmente oficinas virtuais sobre proteção", diz Pesquera, "Nós também fornecemos material didático que elas possam usar de forma autônoma entre as sessões".

Embora os grupos indígenas na Colômbia e no Brasil sejam os mais atingidos pela pandemia, eles ainda não estão na lista de grupos prioritários para receber a vacina, mesmo que a campanha já tenha começado oficialmente.

Descrição da foto: Mulher de uma área rural da Colômbia perto de um mural (2019).

Desde que começamos a coletar dados, estas questões têm persistido ou mesmo piorado com o tempo. Embora a imunização possa estar no horizonte para alguns, a realidade é que muitas pessoas DDH não estão nem perto do topo das listas nacionais de prioridades para vacinação. Nós esperamos que as pessoas defensoras continuem a trabalhar para enfrentar os obstáculos listados acima até o final de 2021, pelo menos.

Grupos de direitos humanos têm bradado sobre isso desde março passado, mas ainda não chegamos a um ponto em que possamos parar de repetir: A pandemia não pode ser usada como pretexto para restringir injustificadamente os direitos e liberdades fundamentais. Os governos não têm desculpa para obstruir abertamente o direito de defender os direitos humanos. Um ano depois, continuamos a pedir à comunidade internacional que proteja e defenda as pessoas defensoras dos direitos humanos, especialmente em tempos de crise, quando elas correm maior risco de serem lesadas. Muitos de nós nos acostumamos às rotinas do "novo normal", mas normalizar estes abusos é perigoso. Devemos continuar a nos manifestar. Apelamos aos governos do mundo inteiro a garantir a segurança das pessoas defensoras e a garantir seu direito à liberdade de expressão e seu direito de defender os direitos humanos, mesmo dentro do contexto de restrições que sejam necessárias e proporcionais.