Rompendo os binários e a reciprocidade intergeracional

/userfiles/image/Viana_Image1_08-25-21.jpg

Na esteira do Fórum de Geração de igualdade de Paris, o maior encontro virtual pela igualdade de gênero, meninas e jovens feministas têm se mobilizado e organizado coletivamente, e pressionado as pessoas tomadoras de decisão. Apesar do recente momento, meninas e pessoas jovens continuaram a enfrentar a exclusão, o adultismo e o tokenismo em espaços formais e informais de tomada de decisão, tanto dentro das organizações quanto nas Nações Unidas. 

Embora a " liderança conjunta intergeracional" seja constante no discurso das pessoas, há uma tendência de cair na velha dinâmica de poder e nas opressões profundamente enraizadas nos sistemas patriarcais.

Com 40 bilhões de dólares anunciados no Fórum de Geração de Igualdade em compromissos com a igualdade de gênero nos próximos 5 anos, é fundamental garantir que esse dinheiro chegue às organizações e movimentos feministas de base, incluindo aquelas liderados por jovens feministas. Esta é uma oportunidade sem precedentes de trabalhar de forma equitativa que reconheça e dê recursos às meninas e jovens como agentes políticos, ao mesmo tempo que fortalece a organização intergeracional e a liderança conjunta baseada na transparência, honestidade e abertura.

Cada geração enfrenta desafios e dinâmicas complexas. Idade, como gênero ou geografia, é uma identidade fluida e sofre alterações em diferentes contextos. Como a binaridade entre juventude e velhice está realmente servindo à nossa organização e relacionamentos? A dicotomia em torno da idade geralmente atua para fragmentar ainda mais o trabalho e pode invisibilizar as pessoas em todo o espectro.

Como feministas jovens que envelheceram dos movimentos juvenis e saíram/estão saindo de papéis de liderança em organizações lideradas por jovens feministas, pensamos muito sobre o que é necessário para organizar de forma eficaz através das gerações. Temos mais perguntas do que respostas, mas acreditamos firmemente que a colaboração e a organização intergeracionais intencionais são essenciais para a resiliência e a sustentabilidade de nossos movimentos.

Onde estão as falhas?

Como parte da geração intermediária, ou geração sanduíche, lutamos para descobrir como apoiar melhor as jovens feministas, não desaparecendo dos lugares que ocupamos recentemente, ainda dando suporte enquanto não ocupamos os espaços que deveriam centrar as jovens feministas. Ao incorporar funções de conexão entre gerações, pretendemos catalisar discussões sobre as transições de liderança que nutrem o indivíduo, a organização e nossos movimentos mais amplos. 

De acordo com nossas experiências, o compartilhamento do poder é uma das falhas mais profundas em espaço e mobilização feminista transnacional intergeracional. Para as gerações mais jovens, incluindo aquela que nos localizamos, compartilhar o poder é constituinte de como organizamos e construímos resiliência. As gerações mais velhas costumam vir de uma época em que "passar a tocha" era o meio justo pelo qual você acessava o poder.

Embora a " liderança conjunta intergeracional" seja constante no discurso das pessoas, há uma tendência de cair na velha dinâmica de poder e nas opressões profundamente enraizadas nos sistemas patriarcais.

Muitas jovens feministas continuam a ser negligenciadas, não são levadas a sério ou experimentam o preconceito de idade em contextos organizacionais, de movimento e intergovernamentais. Nossas próprias experiências intergeracionais nem sempre foram positivas. Receber a tarefa de tomar notas, ter frases cortadas no meio de uma fala ou as pessoas deduzirem que temos uma função júnior, incluindo quando nós mesmas estamos liderando uma organização. Mesmo em espaços bem intencionados em apoiar as jovens feministas e as organizações intergeracionais, a responsabilidade de integrar a juventude nas prioridades organizacionais muitas vezes permanecia com as jovens feminista membros da equipe. Muitas vezes, nossas experiências, como feministas mais jovens, foram permeadas por dinâmicas de poder, lutas, desconfortos e a despolitização de nossa presença em determinados espaços. 

Da mesma forma, muitas gerações mais velhas que historicamente lutaram pelo espaço que ocupam, movem-se por espaços de poder muitas vezes se sentindo negligenciadas, esquecidas, enfrentando uma constante falta de recursos e a necessidade de competir por financiamento e espaço com líderes emergentes. Neste contexto, a abertura para estimular, partilhar experiências, sabedoria, história e conhecimento com as gerações mais novas se mostra menos urgente. É como se só houvesse espaço suficiente para apenas um conjunto de líderes. Como podemos realmente valorizar as experiências e perspectivas de todas as gerações que são tão necessárias para construir nossa libertação coletiva?

Indo além da dicotomia de velhice e juventude 

Construir poder e solidariedade intergeracionais também requer que façamos a desconstrução de  modelos de liderança hierárquica individual, em favor de outras alternativas coletivas de compartilhamento de poder. Para ir contra o capitalismo e a narrativa de competição profundamente arraigada no patriarcado, que diz que para uma pessoa ter sucesso a outra precisa se tornar obsoleta, são necessários mais espaço e oportunidades para uma co-liderança genuína através das gerações, compartilhando o poder e abraçando a abundância em vez da competição.

A fragmentação e as tensões existentes entre as gerações são intensificadas pela competição por financiamento. Não pode ser a estratégia de uma ou outra. Na prática, isso significa apoiar jovens ativistas a terem acesso e controle de recursos, através de financiamento direto, por meio de patrocinadores fiscais, ou trabalhando com mulheres e financiadores feministas que estão transferindo recursos diretamente para meninas e jovens feministas. Isso também significa um financiamento contínuo e flexível para organizações feministas estabelecidas para criar em conjunto abordagens com as jovens para avançar no compartilhamento do poder nas decisões e estruturas. O financiamento para o trabalho na interseção de gerações continua escasso.

Como podemos realmente valorizar as experiências e perspectivas de todas as gerações que são tão necessárias para construir nossa libertação coletiva?

As jovens muitas vezes ficam frustradas e impacientes com o lento progresso das instituições para oferecer justiça e igualdade ou com a falta de interseccionalidade e inclusão nos espaços. Por outro lado, as gerações anteriores lutaram muito pelas conquistas atuais, investindo seu tempo e vigor intelectual na criação de espaços e instituições que deveriam nos aproximar de um mundo mais justo.

Feministas mais jovens nos últimos anos criaram espaços alternativos em resposta, como a “Não conferência" criada antes do Fórum de geração de igualdade, o Encontro Ella na América Latina, fundado na celebração da diversidade e da inclusão de mulheres diversas, ou a primeira Conferencia feminista Global feminina LBQ 2019. São raios de esperança nas lutas para desmantelar as estruturas patriarcais heteronormativas que perpetuam as exclusões.

No entanto, é um erro supor que o surgimento desses espaços se deva apenas à idade das feministas. Diante dos crescentes ataques aos nossos direitos e vidas, e uma cooptação cada vez maior de agendas feministas progressistas, há uma urgência em desmantelar e descentralizar as estruturas de poder até mesmo nos espaços de mobilização. Isso significa ampliar a articulação de uma agenda feminista para incluir toda a nossa diversidade.

Rumo ao compartilhamento coletivo do poder

Onde está o equilíbrio entre ser ativa e aprender (gerações emergentes) e manter a memória institucional, apoiar estratégias e trabalhar para transferir o conhecimento e compartilhar inteligência (feministas experientes)?

Ironicamente, a complementaridade e, às vezes, as visões de mundo, abordagens e experiências diferentes de gerações experientes e as emergentes/mais jovens é o que nos torna dinâmicas e, inevitavelmente, pode nos permitir ter vitórias e realmente alcançar a justiça de gênero. É necessária uma abordagem que funcione em todas as esferas da mudança, à medida que lutamos para que as instituições sejam mais inclusivas e responsáveis, ao mesmo tempo que reinventamos e criamos  conjuntamente sistemas e estruturas alternativas. Para essas mudanças, precisamos da inteligência e da vivência de todas as gerações.

Reconhecemos que a organização necessária para o desmantelamento de estruturas opressivas e injustiças afeta nossos corpos, mentes e espíritos. Portanto, é fundamental manter um espaço genuíno para a cura e o cuidado coletivo dentro dos movimentos e das gerações. Feministas de diferentes gerações continuam a afirmar a necessidade de navegar por traumas intergeracionais. Reconhecer essas realidades e abrir espaço para reparações é um passo importante para a justiça geracional e a solidariedade. Ir além dos intercâmbios em direção à compreensão e apreciação de diferentes experiências vividas e histórias proporcionará um terreno fértil para convergência e colaboração mais profunda entre as gerações. Devemos arranjar tempo para celebrar as nossas vitórias também!

Estamos em um momento em que modelos revitalizados de liderança e organização intergeracionais são necessários, tanto na prática, como na linguagem e nas mudanças de narrativas. Isso requer ir além da dicotomia de velhice e da juventude, reconhecendo o espectro de experiências e encontrando maneiras de adaptação na confusão de nossas identidades mutantes, incluindo aquelas baseadas na idade. Com fortes ondas de ataques de grupos anti-direitos sobre igualdade de gênero, sexualidade e autonomia corporal, é claro que aquelas pessoas comprometidas com agendas transformadoras de justiça social e aquelas que acreditam em mudanças coletivas efetuadas pelos movimentos, precisam umas das outras - não importa a idade.