Levando a sério os compromissos climáticos pela proteção da floresta amazônica: opções de litígio estratégico, ciência e direitos humanos

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O desmatamento é amplamente reconhecido como um fator significativo para o aquecimento global, sendo responsável por cerca de 10% a 13%  das emissões globais de gás carbônico (CO2). No Brasil, essas emissões estão fortemente associadas ao desmatamento resultante da conversão de florestas tropicais em terras para uso agrícola. Isso se relaciona diretamente com o desmatamento na Amazônia.

Por outro lado, essas florestas constituem o principal sumidouro de carbono terrestre do planeta e são fundamentais para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e até mesmo reduzi-los: removem cerca de 36% das emissões antropogênicas de CO2 da atmosfera. Apenas a Floresta Amazônica corresponde a cerca de 20% do sumidouro de carbono do planeta, o que reforça sua importância para a estabilidade climática local e regional.

Desde 2004, duas tendências distintas sobre as taxas de desmatamento surgiram na região amazônica. De 2004 a 2012, o desmatamento foi efetivamente reduzido em 84%. Mas as taxas voltaram a apresentar tendência de alta desde 2012, com a área total de floresta desmatada aumentando de 4.571 para 10.129 km²/ano em  2019. Vários fatores indicam que as taxas de desmatamento serão ainda mais altas este ano, reforçando esse padrão crescente.

De acordo com a meta estabelecida na legislação brasileira sobre o clima, o desmatamento não deveria ultrapassar uma área equivalente a 3.925 km²/ano em 2020. Lamentavelmente, não há motivos para acreditar que o Brasil cumprirá essa meta, como pode ser visto no gráfico abaixo.

Figura. NOBRE, Carlos. Relatório de suporte técnico para Ação de Interesse Público. n. 5048951-39.2020.4.04.7000. São José dos Campos - SP, Brasil, 24 de Setembro de 2020.

 

Para enfrentar esse cenário climático preocupante, o Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) apresentou uma ação civil pública climática em outubro de 2020 visando impor obrigações de proteção climática ao governo brasileiro. Influenciado por casos anteriores de litígios climáticos internacionais na Colômbia, Holanda e Estados Unidos, a ação civil climática do IEA compartilha duas características análogas com esses precedentes importantes: a solicitação de impor obrigações relacionadas ao clima a um governo nacional e uma base constitucional robusta para seus argumentos. 

No entanto, dado o caráter inovador da ação civil pública e a experiência um tanto limitada do judiciário brasileiro em matéria de litígios climáticos, adotamos a estratégia de fundamentar nosso caso na legislação nacional e argumentar segundo os direitos fundamentais bem estabelecidos e tradicionais. Para tanto, nossa ação civil visa “traduzir” em termos jurídicos os principais conceitos científicos relacionados ao papel da floresta amazônica na mitigação das mudanças climáticas.

Essa “decodificação” da ciência em direito se dá por meio da linguagem do litígio baseado em direitos e de uma seleção de direitos humanos já firmemente consagrados na Constituição brasileira e, portanto, amplamente reconhecidos pelos tribunais nacionais. Especificamente, a questão do desmatamento amazônico e de seus malefícios ao clima são tratados por uma defesa jurídica baseada em direitos fundamentais, como o direito à dignidade humana, à vida, à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Além disso, a ação civil pública busca o reconhecimento de um direito fundamental à estabilidade climática para as gerações presentes e futuras, ao mesmo tempo em que preconiza o cumprimento de obrigações e metas objetivamente previstas na legislação brasileira sobre o clima.

Apenas a Floresta Amazônica corresponde a cerca de 20% do sumidouro de carbono do planeta, o que reforça sua importância para a estabilidade climática local e regional.

Na nossa ação civil três escolhas estratégicas fundamentais foram feitas. Em primeiro lugar, a legislação brasileira teve preferência perante os acordos internacionais, a fim de evitar debates desnecessários sobre o caráter vinculante dos acordos. Além disso, buscamos garantir uma base científica sólida encomendando um relatório técnico que apresenta e explica os dados oficiais sobre o desmatamento e sua influência no clima em escala nacional e regional - este documento foi anexado à ação civil como evidência científica. Isso também foi projetado para servir ao propósito fundamental de fornecer aos tribunais informações objetivas com as quais eles poderiam não estar familiarizados. Por último, defendemos o direito à estabilidade climática para as gerações presentes e futuras, como consequência lógica da sinergia entre diversos direitos fundamentais expressamente previstos na Constituição Brasileira e demais legislações.

Antes mesmo da assinatura e ratificação do Acordo de Paris, o Brasil já havia detalhado suas metas de redução de emissões de gases de efeito estufa na chamada Política Nacional sobre Mudança do Clima. A meta brasileira de redução das emissões de gases de efeito estufa é, em outras palavras, um compromisso, já previsto em lei federal, completo com indicadores quantificáveis definidos em decreto e com medidas objetivas traçadas em um plano de ação. Vale repetir que essa legislação é anterior ao Acordo de Paris, foi elaborada por legisladores brasileiros e tem caráter jurídico vinculante incontestável.

Para cumprir essas metas, o governo brasileiro editou um decreto que estabelece planos de ação bastante específicos para prevenir e controlar o desmatamento em diversos biomas brasileiros, um dos quais é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).

O objetivo central de nossa ação civil pública é fazer com que o governo brasileiro tome as medidas cabíveis para cumprir a lei federal que estabelece a Política Nacional de Mudanças Climáticas e, assim, fazer cumprir o PPCDAm. O que esperamos alcançar inclui obter o reconhecimento de um direito fundamental à estabilidade climática para as gerações presentes e futuras e uma ordem judicial obrigando o governo federal a cumprir suas próprias políticas climáticas, em especial, o limite de 3.925 km²/ano de desmatamento na Amazônia para 2020. Caso essa meta não seja atingida até o final deste prazo (que vai de agosto de 2020 a julho de 2021), o governo federal será instado a reflorestar a área equivalente que ultrapasse esse limite.

No entanto, não temos ilusões -  pois este é o consenso científico manifesto sobre o assunto - de que as metas de desmatamento não serão cumpridas, já que, atualmente, o governo brasileiro não está tomando providências para cumprir nem a Lei de Política Nacional sobre Mudança do Clima nem os Planos de Mitigação Climática. Ainda assim, pensando pragmaticamente, mesmo que a meta de redução do desmatamento não seja cumprida no prazo determinado, consideramos que a ação civil cumprirá um propósito importante ao buscar uma ordem judicial para que o governo federal recomponha uma área equivalente à área desmatada acima do limite legal estabelecido.

Essa ação civil visa conciliar a ambição de obter o reconhecimento judicial de um direito intergeracional à estabilidade climática com deveres de proteção absolutamente objetivos e quantificáveis, neste caso específico por meio do cumprimento das metas de combate ao desmatamento na Amazônia. Independentemente do resultado final, a ação civil pública busca estabelecer os fundamentos constitucionais para esta e outras ações civis climáticas que tratem deste assunto.

De forma única, a ação civil pública não se baseia apenas em direitos constitucionalmente reconhecidos, bem como defende um direito fundamental à estabilidade climática, que surge na atualidade como uma representação jurídica do esforço necessário para enfrentar os impactos sobre os diversos direitos humanos que a emergência climática causa e continuará a acarretar.